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Mostrando postagens de agosto, 2020

Conto: A Convidada Penetra

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contos de escritores brasileiros contemporâneos       As coxinhas e bolinhas de queijo estavam ficando frias, mas eu continuei beliscando os aperitivos mesmo assim. Chegou a um ponto em que somente havia quibes no prato. Eu odeio quibes. Aliás, eu nunca havia ido a nenhuma festa em que não sobrasse quibe nos pratos, então concluí naquela noite que aquele era, provavelmente, o salgadinho menos amado do Brasil.        Não conseguia comer mais nada e não fazia nem uma hora de festa. Na tentativa de aplacar meu tédio, substituí a ausência de uma conversa amigável por uma conversa indigesta com meu próprio estômago. E segui nesaa compensação de oralidade pelo começo de festa.        Já estufada, reparei melhor na suntuosa decoração da mesa do bolo para distrair minha mente e parar de comer por mero tédio. Passei a buscar detalhes que eu e Celeste havíamos escolhido juntas na hora do almoço (às vezes, durante o expediente). A paleta lilás e prata. O modelo dos guardanapos alugados

Conto: A vez que não senti

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Contos de escritoras brasileiras contemporâneas Um carro de som passou pela rua como sempre fazia todas as manhãs. Antes de anunciar a venda de botijão de gás, tocou a mesma música de Beethoven, Für Elise . Normalmente, ao acordar com as notas da composição, angústia me enchia por saber que dormi em demasia. Contudo, não foi o que ocorreu naquela manhã. A ansiedade e o desespero não me abateram e, em vez de levantar em pânico, pus-me a olhar o teto, eu imóvel e desagoniado. Nem sequer incômodo com o carro importuno senti naquela hora, apenas permaneci deitado por dez minutos.   O primeiro pensamento a permear minha mente se deslocou por completo do pensamento costumeiro sobre trabalho. Pensei: duvido muito que o vendedor de gás saiba que o jingle  de sua propaganda foi composto por Beethoven e muito menos que a inspiração era uma mulher chamada Elise. Verdade seja dita, eu tampouco sabia quem era a tal da Elise e decidi resguardar-me a ignorância deste detalhe, como se fosse u

Conto: Bolo de tudo

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Contos de escritores brasileiros contemporâneos              A prima que morava em outro estado estava sentada, sorrindo, no sofá reformado já duas vezes. Seu nome, Ana Guilhermina, nunca havia sido mencionado naquela casa por algum motivo que Letícia desconhecia. De práxis, a jovem Letícia teve que ficar de sala com a visita, enquanto a mãe lhe preparava um bolo para o café da tarde. Ana Guilhermina aparentava ter quarenta e cinco anos, porém sua maquiagem carregada mais lhe aumentava a idade que ajudava. Ela falava muito e Letícia muito pouco. Assim, para mostrar interesse, Letícia focou na sobrancelha exageradamente fina da mulher.             Felizmente, a prima engatava num assunto após o outro de modo que à Letícia restava apenas acenar com a cabeça e dizer “sim, verdade”. Os assuntos variavam bastante: o avião, “seus filhos bonitos e formados”, as saudades da pacata cidade onde a família de Letícia insistia em continuar morando. Ana Guilhermina também descrevia os

Crônica: Alto Ministério de Amores e Relacionamentos

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   Por decisão unânime a União acaba de criar o AMAR, o Alto Ministério de Amores e Relacionamentos . A intenção é colocar ordem em uma área há muito tempo desregulamentada uma vez que se percebeu esta lacuna maléfica deixada pelo poder público na esfera privada a qual terminava por prejudicar toda nossa sociedade.        Verificou-se a necessidade desta intromissão extraordinária ao se perceber como a vida amorosa das pessoas afetavam negativamente a economia brasileira, as relações entre indivíduos e o perfeito funcionamento da máquina pública. Talvez até mais que crimes como estelionato ou sonegação. Sobre isto, declara uma especialista na área:      — Funcionários com "dor de cotovelo" produzem menos e faltam mais. Além disso, estão mais suscetíveis a episódios clínicos como depressão, melancolia, rosto inchado e sociofobia. Apaixonados tendem a ser mais desatentos e  cometem mais erros. São chatos, alegres demais e obcecados pelo mesmo assunto incomodando os demai

Conto: O Choro da Noite

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     As malas pesadas jaziam abertas no chão de madeira velha. Apesar de Tia Alberta reclamar da desorganização, já não fazia muito sentido fechá-las para reabri-las toda vez que eu tinha que pegar um pertence. Era já a terceira noite que dormia na casa da irmã de meu avô. Meus pais decidiram que me faria bem ficar uma semana longe de qualquer tecnologia existente, inclusive um simples chuveiro elétrico. Se não fossem os livros empoeirados da casa, certamente morreria eu de tédio antes de hipotermia. Mesmo com a ausência de entretenimento, Tia Alberta não parecia nunca melancólica e entediada. Ocupava-se de atividades rotineiras que, à minha vista, não tinha como satisfazer alma humana por muito tempo. Toda manhã passava o café e assava broas frescas. Era broa com manteiga havia três dias. Como não enjoava?! Pensava eu, desejoso dos salgados da cantina do colégio. Eu não quero soar ter sido à época um rapazote mimado de doze anos vindo da cidade, porém hás de concordar que um men