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Mostrando postagens de 2020

Micro-conto: Sujeita Acumulada

O pente preto de Eraldo caiu para debaixo da cama. Ele suspirou e se agachou para tatear pela sujeira acumulada. Não encontrando-o, o homem foi buscar uma vassoura para arrastar qualquer coisa que ali estivesse. Após muito cavoucar com a vassoura, ele trouxe para si: uma caneta, um frasco de remédio para dor nas costas,  um carrinho de Sérgio e dois grampos. O seu pente veio na última vassourada. Então, Eraldo limpou o objeto, pôs no bolso e devolveu todo o resto para onde havia achado. Debaixo da cama. Sentou-se no sofá, ligou a televisão e gritou: — Sandra, achei seu remédio para dores lombares. Você não varre debaixo dos móveis não, mulher?

Conto Realista Fantástico: Imagina só, menina!

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   O que uma criança faz num engarrafamento pré-carnaval?   Um conto realista fantástico sobre imaginação e tédio.  Contém Videogame Portátil     No banco traseiro da caminhonete, eu, Rafael e Rodrigo brigávamos pela vez de jogar o videogame  portátil. Eu era a caçula. De longe, a mais fraca dos três. De costume, minha manha ganharia a posse do objeto cobiçado; meus pais, no entanto, discutiam calorosamente sobre a construção de uma piscina na nossa nova casa de praia. Seria impossível tirá-los de sua conversa séria de adultos para voltarem a atenção a uma briguinha eterna de crianças e eu ainda seria repreendida gratuitamente.     Rafael, o mais velho, puxava o aparato de Rodrigo sem deixá-lo jogar nem por dois minutos. Rodrigo eventualmente fazia o mesmo depois de lutar esmagado contra o banco do carro. Era um tal de " peraí , cara" a cada trinta segundos. E eu? Somente tive a chance de jogar o joguinho de bonequinho enquanto atravessávamos a ponte Rio-Niterói. Depois do pe

Conto: Aos dezessete anos

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   Uma mãe consola sua filha adolescente. Ela não é muito boa nisso. Um conto sobre empatia e maternidade. Contém coriza.     Atravessei o  corredor para buscar as chaves do carro no quarto justamente quando um agudo fraco escapou da porta do quarto de Amanda. O agudo era intermediado por soluços e era certo que minha filha estava chorando. Encarei a fechadura pedindo para ser girada por um segundo, mas finalmente maneei a cabeça. Sim , ignorei o chamado de meu zelo e me apressei para agarrar as chaves antes que eu cedesse à tentação de conferir o motivo das lágrimas.      Algum desavisado certamente me julgaria. Em minha defesa, t ão somente esse evento fosse algo singular, eu teria adentrado em seu quarto e enxugado suas lágrimas juvenis com um lenço de candura. Porém, hás de me dar razão: a menina já fazia isso uma vez por semana e toda vez que brigava com seu namorado complicado. O caçula estava no futebol, e eu não podia deixá-lo muito tempo esperando. Deixá-lo lá seria tão não-ma

Conto: O Ladrão de Pizza

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 Um conto contemporâneo sobre a vez em que uma pizza valeu mais que um celular. A buzina da motocicleta ressoou três vezes pela rua mal iluminada. A cortina da janela do sobrado se abriu, depois de vinte segundos. e uma sombra fez sinal ao entregador. Daí, passaram-se a ouvir três vozes discutindo sobre onde estava a carteira e quem desceria. O entregador já conhecia a ladainha, pois já era comum o cliente só deixar para procurar o dinheiro na hora em que a entrega chegava. Agora a discussão era quem iria buscar. Então, enquanto aguardava alguém descer do sobrado, ficou respondendo mensagens no celular, entediado e desatento. Não havia viva alma na rua desde que começou a quarentena, principalmente àquela hora. Completaram-se três minutos de espera. Já era quase uma e meia da madrugada de segunda e essa era sua última entrega. Suspirou cansado. Para ele, o fim de semana só acabava na madrugada de segunda quando os esfomeados tardios faziam os últimos pedidos. Compreensivamente, o m

Conto: Céu da Boca

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 Ele só pediu um pintor de primeira categoria. O resultado foi divino. Um conto sobre choque do antigo e o novo. Atenção! Contém: infiltração e tinta fresca.  Contos de escritores contemporâneos

Conto: Chorando Jabuticabas

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Seu Valente tem uma jabuticabeira e ai de quem chegar perto. Um conto sobre o apego ao passado, ao material e à repressão de sentimentos indesejados. Contém jabuticabas e Anum.    A brisa fria passou por entre as pilastras da varanda. Era começo de julho, mas o ápice do inverno não repelira o morador da casa de permanecer ali para assistir à manhã virar meio-dia. Sua cadeira balançava ritmicamente enquanto seu proprietário lustrava sem pressa sua espingarda velha. Ali assobiava com o canto da bem-te-vi e do sabiá. Fazia oito anos que um pé de jabuticabas fora plantado por Dona Ana, a pacata mãe do herdeiro do casebre,   pouco antes de sua morte. A partir daí, o homem viu a arvorezinha crescer a cada visita ao sítio conforme o tempo tentou remendar as saudades da sua mãezinha. Na varanda fria, ele muito se agradava de finalmente contemplar o tronco da árvore lotado de pontinhos roxos e redondinhos. Frutos oriundos das mãos de sua mãe. Às vezes, uma lágrima lhe escapava pelo nari

Conto: A Convidada Penetra

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contos de escritores brasileiros contemporâneos       As coxinhas e bolinhas de queijo estavam ficando frias, mas eu continuei beliscando os aperitivos mesmo assim. Chegou a um ponto em que somente havia quibes no prato. Eu odeio quibes. Aliás, eu nunca havia ido a nenhuma festa em que não sobrasse quibe nos pratos, então concluí naquela noite que aquele era, provavelmente, o salgadinho menos amado do Brasil.        Não conseguia comer mais nada e não fazia nem uma hora de festa. Na tentativa de aplacar meu tédio, substituí a ausência de uma conversa amigável por uma conversa indigesta com meu próprio estômago. E segui nesaa compensação de oralidade pelo começo de festa.        Já estufada, reparei melhor na suntuosa decoração da mesa do bolo para distrair minha mente e parar de comer por mero tédio. Passei a buscar detalhes que eu e Celeste havíamos escolhido juntas na hora do almoço (às vezes, durante o expediente). A paleta lilás e prata. O modelo dos guardanapos alugados

Conto: A vez que não senti

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Contos de escritoras brasileiras contemporâneas Um carro de som passou pela rua como sempre fazia todas as manhãs. Antes de anunciar a venda de botijão de gás, tocou a mesma música de Beethoven, Für Elise . Normalmente, ao acordar com as notas da composição, angústia me enchia por saber que dormi em demasia. Contudo, não foi o que ocorreu naquela manhã. A ansiedade e o desespero não me abateram e, em vez de levantar em pânico, pus-me a olhar o teto, eu imóvel e desagoniado. Nem sequer incômodo com o carro importuno senti naquela hora, apenas permaneci deitado por dez minutos.   O primeiro pensamento a permear minha mente se deslocou por completo do pensamento costumeiro sobre trabalho. Pensei: duvido muito que o vendedor de gás saiba que o jingle  de sua propaganda foi composto por Beethoven e muito menos que a inspiração era uma mulher chamada Elise. Verdade seja dita, eu tampouco sabia quem era a tal da Elise e decidi resguardar-me a ignorância deste detalhe, como se fosse u