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Conto: Objetificação

       O céu estava cinza. A tira da sandália nova roçava no calcanhar enquanto sua dona se apressava para a estação do metrô. Era um calçado baixo e macio, preto, custara trinta e cinco reais numa sapataria popular. Contudo,  mentira que seria totalmente confortável.  Aos poucos, a tira abriu uma ferida no local em que se atritava. Com o calcanhar já sangrando, a moça grunhiu. Depois, xingou o calçado de porcaria barata. A sandália respondeu se raspando mais um pouco no machucado.      Não demorou muito e a rasteirinha foi parar em uma lixeira na frente de uma sapataria. Crime: culpada por pegar no pé da pessoa errada. A sandália, entretanto, era novinha. Daquelas que ninguém joga fora, mas fica preterida guardada no armário. Poderia ter sido doada ou vendida em um brechó. Mas não, foi atirada sem dó na lata do lixo.     Após trinta e oito minutos, um catador de latinha começou a cutucar o lixo e jogou a sandália que machucava no chão, perto do meio fio.  A outra ficou dentro da lixei

Crônica: A rainha morreu!

     "A rainha morreu!"     A notificação de meu celular apresentou as três palavras soltas e sem vida da mesma forma que sempre anunciava que meus créditos acabaram. Surpresa e incrédula, engoli a última colherada do meu almoço e peguei o aparelho para verificar a mensagem. Cliquei. Era um amigo avisando exatamente aquilo que eu havia lido: a rainha morrera. Entretanto, a informação parecia muito suspeita porque a rainha britânica era como prótons e elétrons. Isto é, ela não estava viva e, sim, existia como parte constituinte do universo que Deus criara. Que haja Elizabeth!     Levantei a sobrancelha e digitei: "deixa de ser mentiroso!"     A resposta rebateu rapidamente: "por que eu brincaria com algo assim?"    Não que eu duvidasse da integridade moral do portador da notícia, mas as pessoas brincavam sobre a falecida todos os dias. Que o primeiro pet da monarca inglesa fora um estegossauro. Que ela fora colega de classe de Metusalém... Isso tudo só porq

Conto contemporâneo: Quem vive sem cebolas?

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     Era sexta-feira de tardezinha. Era daquelas tardezinhas que não são frias e nem quentes. Daquelas tardezinhas calmas em que o céu está com poucas nuvens e a rádio do vizinho toca samba-de-raiz. Aparentemente, tudo estava bem. Menos para Dona Tânia.      Acabaram-se as cebolas. Como viver sem cebolas? Dava para viver sem tomates, mas cebolas? Nunca! Com cebolas, se refogava arroz, frango, carne bovina, peixe. Temperavam-se caldos. Faziam-se vinagrete e farofa. Isso era tão verdade verdadeira absolutaque era a primeira coisa que Dona Tânia fazia ao cozinhar. Nenhum país (quiçá mundo) poderia permanecer em paz sem cebolas por muito tempo.     Ela grunhiu ao contemplar a gaveta inferior da geladeira. Não só faltavam cebolas como também as batatas e seus amigos turbérculos. Ergueu a coluna e reclamou da dor nas costas. Daí, com desdém fitou o carrinho de compras jogado no chão do quintal. Estava na hora de ir ao horti-fruti e Dona Tânia só queria assistir a novela mexicana. Sim, aquela

Micro-conto: Sujeita Acumulada

O pente preto de Eraldo caiu para debaixo da cama. Ele suspirou e se agachou para tatear pela sujeira acumulada. Não encontrando-o, o homem foi buscar uma vassoura para arrastar qualquer coisa que ali estivesse. Após muito cavoucar com a vassoura, ele trouxe para si: uma caneta, um frasco de remédio para dor nas costas,  um carrinho de Sérgio e dois grampos. O seu pente veio na última vassourada. Então, Eraldo limpou o objeto, pôs no bolso e devolveu todo o resto para onde havia achado. Debaixo da cama. Sentou-se no sofá, ligou a televisão e gritou: — Sandra, achei seu remédio para dores lombares. Você não varre debaixo dos móveis não, mulher?

Conto Realista Fantástico: Imagina só, menina!

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   O que uma criança faz num engarrafamento pré-carnaval?   Um conto realista fantástico sobre imaginação e tédio.  Contém Videogame Portátil     No banco traseiro da caminhonete, eu, Rafael e Rodrigo brigávamos pela vez de jogar o videogame  portátil. Eu era a caçula. De longe, a mais fraca dos três. De costume, minha manha ganharia a posse do objeto cobiçado; meus pais, no entanto, discutiam calorosamente sobre a construção de uma piscina na nossa nova casa de praia. Seria impossível tirá-los de sua conversa séria de adultos para voltarem a atenção a uma briguinha eterna de crianças e eu ainda seria repreendida gratuitamente.     Rafael, o mais velho, puxava o aparato de Rodrigo sem deixá-lo jogar nem por dois minutos. Rodrigo eventualmente fazia o mesmo depois de lutar esmagado contra o banco do carro. Era um tal de " peraí , cara" a cada trinta segundos. E eu? Somente tive a chance de jogar o joguinho de bonequinho enquanto atravessávamos a ponte Rio-Niterói. Depois do pe

Conto: Aos dezessete anos

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   Uma mãe consola sua filha adolescente. Ela não é muito boa nisso. Um conto sobre empatia e maternidade. Contém coriza.     Atravessei o  corredor para buscar as chaves do carro no quarto justamente quando um agudo fraco escapou da porta do quarto de Amanda. O agudo era intermediado por soluços e era certo que minha filha estava chorando. Encarei a fechadura pedindo para ser girada por um segundo, mas finalmente maneei a cabeça. Sim , ignorei o chamado de meu zelo e me apressei para agarrar as chaves antes que eu cedesse à tentação de conferir o motivo das lágrimas.      Algum desavisado certamente me julgaria. Em minha defesa, t ão somente esse evento fosse algo singular, eu teria adentrado em seu quarto e enxugado suas lágrimas juvenis com um lenço de candura. Porém, hás de me dar razão: a menina já fazia isso uma vez por semana e toda vez que brigava com seu namorado complicado. O caçula estava no futebol, e eu não podia deixá-lo muito tempo esperando. Deixá-lo lá seria tão não-ma

Conto: O Ladrão de Pizza

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 Um conto contemporâneo sobre a vez em que uma pizza valeu mais que um celular. A buzina da motocicleta ressoou três vezes pela rua mal iluminada. A cortina da janela do sobrado se abriu, depois de vinte segundos. e uma sombra fez sinal ao entregador. Daí, passaram-se a ouvir três vozes discutindo sobre onde estava a carteira e quem desceria. O entregador já conhecia a ladainha, pois já era comum o cliente só deixar para procurar o dinheiro na hora em que a entrega chegava. Agora a discussão era quem iria buscar. Então, enquanto aguardava alguém descer do sobrado, ficou respondendo mensagens no celular, entediado e desatento. Não havia viva alma na rua desde que começou a quarentena, principalmente àquela hora. Completaram-se três minutos de espera. Já era quase uma e meia da madrugada de segunda e essa era sua última entrega. Suspirou cansado. Para ele, o fim de semana só acabava na madrugada de segunda quando os esfomeados tardios faziam os últimos pedidos. Compreensivamente, o m