Conto: Aos dezessete anos

contos contemporâneos: aos dezessete

   Uma mãe consola sua filha adolescente. Ela não é muito boa nisso. Um conto sobre empatia e maternidade. Contém coriza.

    Atravessei o corredor para buscar as chaves do carro no quarto justamente quando um agudo fraco escapou da porta do quarto de Amanda. O agudo era intermediado por soluços e era certo que minha filha estava chorando. Encarei a fechadura pedindo para ser girada por um segundo, mas finalmente maneei a cabeça. Sim, ignorei o chamado de meu zelo e me apressei para agarrar as chaves antes que eu cedesse à tentação de conferir o motivo das lágrimas. 

    Algum desavisado certamente me julgaria. Em minha defesa, tão somente esse evento fosse algo singular, eu teria adentrado em seu quarto e enxugado suas lágrimas juvenis com um lenço de candura. Porém, hás de me dar razão: a menina já fazia isso uma vez por semana e toda vez que brigava com seu namorado complicado. O caçula estava no futebol, e eu não podia deixá-lo muito tempo esperando. Deixá-lo lá seria tão não-materno quanto!

    Logo que coloquei as chaves na bolsa, um gemido muito mais intenso atravessou a parede. Meu coração apertou e me arrastei ao quarto para ouvir a lamúria costumeira de Amanda. Ao bater à porta, a dobradiça torceu de pronto, quase como se já contasse com a vinda de meu consolo. Minha bela filha figurava com seus olhos vermelhos e um fio de coriza nascendo de uma das narinas. A cara lânguida totalmente inchada. É... dessa vez parecia bem pior que a vez da briga em que o Tiago não ligou para ela no aniversário de namoro de seis meses. Sim, eles comemoravam meses de namoro.

    — Amanda, Tiago outra vez? — perguntei, já apertando o cenho. 

    A menina se atirou em meus braços e molhou meu blazer preto de coriza e lágrimas. Soluçou e gemeu até que conseguiu exprimir uma simples frase:

    —  Acabou de vez!

    Apertei os lábios, impaciente. Não era só um desentendimento. Era o primeiro término de Amanda aos dezessete anos em um namoro de um ano de duração. Aquele consolo com certeza demoraria. Por conseguinte, Felipe mofaria na escola de futebol por meia hora no mínimo; eu levaria uma reprimenda do técnico. De novo. É a vida! O dever me chama!

    — Querida, tem certeza de que acabou? Talvez vocês voltem e foi só um desentendimento. — comecei sem saber o que dizer. Na realidade, eu sempre fui péssima para confortar os outros. Sempre balanço a cabeça e digo algo como "nossa, ruim mesmo!". 

     — Não, mãe! É pra valer. Eu quem terminei. Eu vi o Tiago "se agarrando" com a Priscila do terceiro ano C atrás da escola. Idiota! — fulminou-me com as palavras.

    Carambola! Eu realmente não tinha tempo para assistir à Malhação de Amanda. Depois do Felipe, ainda tinha que levar o carro na oficina. Apesar de minha falta total de compaixão verdadeira e sincera, levei minha filha pela mão à cama cheia de pelúcias. Coloquei sua cabeça em meu ombro e deixei-a chorar até que fosse o momento para alguma palavra de minha sabedoria de mulher feita e madura. 

    Como previsto, ela deu espaço para minha fala após dois gemidinhos, uma série de soluços, uma assoada de nariz e duas dúzias de lágrimas.  Com duas piscadas atentas como deixa, eu iniciei meu discurso em direção ao horizonte.  

    — Amanda, as frustrações fazem parte da vida. Horas virão em que o teu homem decepciona. Ele foi um bobo por perder você. O importante é que você é jovem, tem um corpo quase sem celulite e que nenhum relacionamento na tua idade é tão crucial assim. Você não vai nem se lembrar desses namoricos de adolescência. — respondi, orquestrando cada frase de efeito (tiradas dos livros de autoajuda ou de revista de fofoca. Que seja! Funciona na maioria das vezes quando minhas amigas divorciadas pedem ajuda).

    A menina me fitou incomodada. Certamente, não lhe agradaram meus conselhos. Passou as mãos em seus cabelos tingidos de ruivo e os prendeu em um coque. Depois, levantou e rodou o quarto até parar no retrato dos avós com ela. Segurou-o com ambas as mãos e sentou-se ao meu lado novamente. Deu um sorrisinho.

    — Mãe, com que idade vovó casou com vô mesmo? — disse, seus olhos bem abertos.

        Respondi que, aos dezesseis, minha mãe conheceu e se casou com meu pai. Então, ela engatou em um choro pavoroso. A coriza pingando. Terrível! Que nojo! Sem entender nada, eu lhe perguntei porque estava falando da avó.

    — Você diz que nenhum namoro é importante na minha idade, mas sua mãe viveu 40 anos com um homem que conheceu mais nova que eu. Nunca vou poder dizer que conheci meu marido aos quinze e que casamos depois da faculdade, igual ao que sonhei. — a garota choramingou, apertando o porta-retrato contra o peito.

    É muito filme de comédia adolescente na cabeça dessa menina! Pensei e tirei o retrato de sua mão, jogando para o lado.

    — Filha, que ideia! Tua vó era da década de 30. Todo mundo casava cedo. Eu namorei três rapazes antes de casar com teu pai aos vinte e três. Repito: nenhum problema é esse fim de mundo na tua idade — repliquei, indignada com a lógica da garota.

    Daí, Amanda me apontou uma foto em que eu estava com meu marido e com um grupo amigos na praia de Ipanema. Na foto, éramos adolescentes e nem namorávamos ainda. Depois, apontou para uma foto sua com Vanessa, a minha colega de praia que casou com meu irmão anos depois. Em seguida, mencionou a Sabrina, colega de escola que agora era minha sócia. Projetou o queixo para frente, sorriu de deboche e me esperou rebater.

    Dei um riso sem graça. Sabia muito bem aonde a espertinha queria chegar. Contudo, recusei-me a engatar naquele papo. Eu conferi o relógio e sobressaltei.

    — Ah, mocinha! Só estou querendo dizer que nada que acontece agora vai determinar tanto todo o seu destino! Não é o fim do mundo! Vem comigo que eu tenho que buscar teu irmão! Rápido!

    Ela acenou com a cabeça e me seguiu. Já no carro, ela estava um pouco mais calma e o seu rosto, bem mais apresentável. Conversamos, no entanto, nada mais sobre o término até chegarmos à Escolinha de Futebol. Lá, como esperado, o técnico me encarou mal-humorado e trouxe Felipe choroso ao carro. Para completar, Felipe perturbara o técnico o tempo todo porque o time de futebol dele havia perdido de lavada para a outra equipe. Disse que a culpa era minha que não fora assistir à partida. Coisa de criança, você sabe... Chorar porque perdeu o jogo... A volta teria sido o mesmo silêncio se não fosse Felipe resmungando porque perdeu o jogo e o desenho. Eu sinceramente queria ter esses problemas.

    No sinal vermelho, Amanda se esticou e aumentou o rádio para abafar o choramingo de Felipe. Daí, conferiu suas unhas, impecavelmente pintadas com francesinha, e passou um gloss nos lábios fazendo uso do espelho do carro. Soltou a cabeleira. Por fim, virou para mim e olhou como se quisesse dizer algo. Correspondi-lhe com um sorriso. Ela respirou muito profundamente como se precisasse de ar para dizer o que desejava.

    — Mãe, meu namoro acabar não é tão determinante, ? — disse em um único fôlego.

     Atenta ao sinal vermelho, eu concordei com outro sorriso de lado e uma balançadinha de cabeça. Finalmente, Amanda havia aceitado minhas palavras. Já não era sem tempo. Eu estava cheia de problemas de verdade para me preocupar como levar o carro para pintar o arranhão. Sem tempo para drama adolescente! Triunfante, dei a marcha para seguir, feliz por ter cumprido com sucesso meu dever de aconselhamento materno.

    — Então, também não tem problema de eu fazer mochilão ano que vem e estudar Moda na faculdade ao invés de Direito. 

    Depois dessa revelação, eu resolvi o problema do arranhão. O mecânico deu desconto para a pintura, já que eu tive que consertar a lanterna quando joguei o carro para o lado do poste.


Contos contemporâneos de escritores brasileiros

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