Conto Realista Fantástico: Imagina só, menina!


  O que uma criança faz num engarrafamento pré-carnaval?

 Um conto realista fantástico sobre imaginação e tédio.

 Contém Videogame Portátil

   No banco traseiro da caminhonete, eu, Rafael e Rodrigo brigávamos pela vez de jogar o videogame portátil. Eu era a caçula. De longe, a mais fraca dos três. De costume, minha manha ganharia a posse do objeto cobiçado; meus pais, no entanto, discutiam calorosamente sobre a construção de uma piscina na nossa nova casa de praia. Seria impossível tirá-los de sua conversa séria de adultos para voltarem a atenção a uma briguinha eterna de crianças e eu ainda seria repreendida gratuitamente.

    Rafael, o mais velho, puxava o aparato de Rodrigo sem deixá-lo jogar nem por dois minutos. Rodrigo eventualmente fazia o mesmo depois de lutar esmagado contra o banco do carro. Era um tal de "peraí, cara" a cada trinta segundos. E eu? Somente tive a chance de jogar o joguinho de bonequinho enquanto atravessávamos a ponte Rio-Niterói. Depois do pedágio, meus irmãos deram o golpe de Estado e eu só pude ficar repetindo "poxa, quando eu vou jogar de novo?", fazendo sempre beicinho.

    Na altura de Manilha, percebi ser inútil insistir em pleitear meus direitos. Apenas cruzei os braços e virei o rosto para a janela. Estava um engarrafamento sem fim. Daqueles épicos. Desse modo, em vez de poder comtemplar uma estrada viva correndo, apenas um caminhão cinza bloqueava a minha visão para qualquer fonte de curiosidade infantil. Por minutos, resmunguei sobre o que tinha de legal nos lagos da tal Região dos Lagos fluminense para ficarmos parados ali numa ensolarada quinta-feira pré-Carnaval. A casa recém-comprada pelos meus pais nem sequer tinha piscina! 

    Tão logo o caminhão se moveu, um carro amarelo curioso entrou em seu lugar. Nele, acreditem, um palhaço, um mágico, uma bailarina e um mímico se espremiam entre malas, ventiladores e travesseiros. O mágico, sério, era o motorista. Coloquei ambas as mãos no vidro da janela e esbugalhei meus olhos estática em direção à bizarrice. Sem muita demora, a bela bailarina percebeu minha presença e acenou simpática. Apontei para meu peito incrédula e ela sorriu entretida. Um sorriso me escapou de volta.

    Suprimindo risadinhas, a moça de tutu amarelo cutucou o palhaço no banco da frente e mexeu os lábios de maneira incompreensível. O homem maquiado e enrugado, com peruca verde e roupas coloridas, fez uma careta para mim. Assim, recolhi-me com medo. Nunca fui muito fã de palhaços. Porém, o homem não desistiu de conquistar minha admiração. Apontou para cima rindo e tirou um monte de lençol de sua roupa. Depois, travesseiros. Para o meu espanto (e talvez do carro de trás), o palhaço animado abriu a janela do carro e arremessou tudo pela estrada sem muita hesitação. Um colchão inflável foi seu Gran Finale e em seguida deu duas buzinadas no seu nariz vermelho. Gargalhou de meu olhar fixo e voltou-se para frente.

   De pronto, agarrei o encosto do assento e enfiei esbaforida minha cabeça entre os meus pais. Balancei o ombro da minha mãe e ela me ignorou como uma formiga. Continuou, assim, falando dos custos do pedreiro e do material de construção. Afoita demais para esperar um lugar de fala, dei vários chutes rápidos na sua cadeira, para que ela se virasse e visse o palhaço louco. Má ideia...

    — Esquece videogame! — ela berrou, já estressada com a briga sem fim dos meus irmãos e as interrupções constantes em seu raciocínio. 

    — Mãaae, eu só queria que você visse o palhaço jogando os lençóis dele pela carro. — miei.

    — Bom para ele. Eu quero atirar o videogame pela janela também. — ela concluiu e continuou debatendo a questão da obra.

    Desanimada, virei-me para meus irmãos. Como sempre, Rafael e Rodrigo estavam inertes em seu joguinho. Portanto, para minha tristeza, não havia quem no mundo testemunhasse aquele momento inusitado comigo. Ninguém ali se interessava em um carro amarelo com uma bailarina sorridente, um mímico, um mágico sério e um palhaço desprendido de sua roupa de cama. Diante de tamanha indiferença, simplesmente desisti de partilhar com eles aquele espetáculo e voltei minha atenção ao palhaço e seus amigos.

    Então, já atenta aos meus novos companheiros de engarrafamento, a bailarina fez sinal com a mão para que aguardasse. Em seguida, ela abriu a porta do carro parado e, bem ali no meio da Rio-Manilha, ela se pôs num dedo só. Com seu tutu amarelo e tudo. Sem medo de ser atropelada por moto alguma ou de chamar atenção para si. Ali, ficou graciosa por um minuto e ainda levantou uma perna para o alto. Por fim, deu um pulinho no ar e pousou com as mãos em sua cintura. Dei aplausos silenciosos, e a bailarina voltou ao seu carro apertado após dobrar os joelhos em reverência à plateia. 

     Abri a janela do carro e pus a cabeça para fora. Não era possível que ninguém vira uma bailarina de tutu amarelo no meio do engarrafamento! Porém, o motorista de trás estava comprando biscoito de polvilho com um camelô. Atrás da gente, uma mulher fumava conversando com a amiga. E claro, o tal do caminhão cinza. Depois de meu pai reclamar que eu perderia a cabeça e deixaria o ar gelado escapar, tive que simplesmente fechar a janela e aceitar que eu fora a única plateia da dançarina. Talvez a única que ela realmente achava que deveria ter.

    Apertei meus joelhos. Será que eles fariam outra coisa divertida e surpreendente? Meus olhos vibraram em expectativa, mas eventualmente abaixaram em decepção ao pensar que os vizinhos de engarrafamento haviam enjoado de mim. A trupe permaneceu parada por longos dois minutos. Contudo, não querendo presumir nada, bati levemente no vidro para ver se fariam algo novo. O mímico franziu a testa. Engoli seco. Daí, ele trocou de lugar com a bailarina e passou a mover os lábios sem som algum, como se estivesse reclamando. 

    Pousei as duas mãos no vidro e colei meus olhos no carro para tentar ler a fala do moço maquiado de branco e preto com chapeuzinho à la Chaplin. O artista, então, abaixou o vidro do carro e imitou minha posição. Daí, fingiu mover a manivela da porta e portou-se como se o pescoço escapasse do carro de repente. Enquanto rodava a manivela de mentira, subiu e desceu a cabeça como se o vidro a levasse. Lá no alto, tentou puxar a cabeça presa da janela que não existia e pôs sua língua para fora rindo. Abaixou o vidro fictício, voltou para dentro do carro com o pescoço torto, puxou sua orelha  e pôs a cabeça em seu lugar devido.

    Dessa vez, não me contive e aplaudi mais forte. Em consequência, meus pais me ordenaram parar de fazer barulho. Daí, meus irmãos me chamaram de doida. Eu, pois, franzi a testa por conta da censura não-cabida contra meu entusiasmo genuíno. Absurdo esses quatro não verem o que estava acontecendo e ainda me repreenderem!

    Um minuto depois, meu pai deu uma longa buzinada para o carro da frente. Os outros fizeram o mesmo, inclusive o motorista mágico do carro amarelo, que até então permanecera sério. Repentinamente, a Bailarina Talentosa e o Mímico Trágico amarraram seus dois ventiladores na lateral traseira do carro. O palhaço, sem hesitar, começou a inflar sua roupa colorida. O mágico só tirou sua cartola e aguardou.

    Aquilo já estava ficando muito doido para ninguém notar. Ah, mas alguém tinha que ver o que estava acontecendo! Logo, balancei os ombros de Rodrigo, que deu um tapinha na minha mão. 

— Você não vai jogar nem tão cedo, Rafaela! Desiste! Você é muito ruim! Vai perder os pontos todos.— murmurou meu irmão sem nem me olhar e tentando pegar o videogame do Rafael.

    Prendi a respiração e fiquei vermelha de tanta raiva. Assim, quis apenas verificar a  próxima doideira dos vizinhos de engarrafamento. Acreditem ou não: o carro amarelo circense inexplicavelmente planava por causa da roupa do palhaço e era impulsionado pelos dois ventiladores de veraneio para cima.  A bailarina, ainda muito simpática, sorria e acenava tchau. Boquiaberta, fiz o mesmo. 

    Antes que o carro chegasse à altura do caminhão cinza, o mágico jogou uma purpurina de sua cartola para fora de sua janela. Cada grão colorido e cintilante caíra sobre o carro e o transformou em uma pequena pomba branca. A pomba circense voou para até onde eu não conseguisse mais ver. Tapei minha boca antes que eu gritasse e recebesse outra bronca. 

    Depois da estrada de Manilha, o fluxo de carros melhorou e a viagem continuou um pouco menos chata do que antes já que dava para ver a paisagem passando. Até meus irmãos deixaram de jogar, por dois minutos, para ver o caminho e me ofereceram o videogame.  Com o objeto de desejo nas mãos, agitei-me sorrindo. Finalmente! Então, bisbilhotei sem pretensão para o lado e avistei uma pomba branca voando do nosso lado. Seriam eles? Fitei-a por cinco minutos, voando adiante de nós. Meus olhos presos.

    — Menina chata! Era só para encher mesmo — disse o mais velho de treze anos, trazendo o game para si de novo.

   — Não vai jogar, não? Pediu tanto. Bem, já estamos chegando mesmo. Só vou abastecer. — comentou meu pai.

    Na frente do posto de gasolina, havia um terreno onde o carro amarelo dos meus quatro novos amigos estava estacionado perto de um caminhão cinza. Enquanto eu me esforçava para fazê-los me verem,  a porta do caminhão foi aberta por um grupo de pessoas e essas passaram a retirar equipamento e tendas enroladas do veículo "chato". 

    Depois daquele dia, nunca mais desprezei nenhum caminhão cinza. Vai que tem um circo dentro!


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