Conto contemporâneo: Quem vive sem cebolas?

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    Era sexta-feira de tardezinha. Era daquelas tardezinhas que não são frias e nem quentes. Daquelas tardezinhas calmas em que o céu está com poucas nuvens e a rádio do vizinho toca samba-de-raiz. Aparentemente, tudo estava bem. Menos para Dona Tânia.

    Acabaram-se as cebolas. Como viver sem cebolas? Dava para viver sem tomates, mas cebolas? Nunca! Com cebolas, se refogava arroz, frango, carne bovina, peixe. Temperavam-se caldos. Faziam-se vinagrete e farofa. Isso era tão verdade verdadeira absolutaque era a primeira coisa que Dona Tânia fazia ao cozinhar. Nenhum país (quiçá mundo) poderia permanecer em paz sem cebolas por muito tempo.

    Ela grunhiu ao contemplar a gaveta inferior da geladeira. Não só faltavam cebolas como também as batatas e seus amigos turbérculos. Ergueu a coluna e reclamou da dor nas costas. Daí, com desdém fitou o carrinho de compras jogado no chão do quintal. Estava na hora de ir ao horti-fruti e Dona Tânia só queria assistir a novela mexicana. Sim, aquela repetida mesmo. O pior de tudo era que o inútil do marido não sabia escolher os vegetais direito. Somente ela, a heroína sábia do mercadinho, poderia aceitar tão nobre missão.

    Foi ao banheiro. Olhou-se no espelho. Em sua mente, parecia uma bruxa velha. Roupas com furo, cabelo arrepiado, bigode por fazer. Indignou-se contra si mesma. Num ímpeto de alto cuidado, Dona Tânia cortou o bigode e penteou o cabelo. Por fim, rasgou a blusa da faxina e jogou fora como pano de chão. Vestiu uma das poucas camisas ajeitadinhas. Uma blusinha preta de "puá". Depois, passou batom cor de canela. Sorriu de leve ao se perceber rubra e bela.

    Depois de minutos de preparação, Dona Tânia saiu desfilando ladeira abaixo com seu carrinho de compras. O carrinho velho era pintado de branco e fazia um ruído metálico tolerável em relação a outros carrinhos velhos de feira. Disto, Dona Tãnia não se envergonhava; tudo seu era bem cuidadinho. Ela andando com carrinho ranhento e resmungão que nem Dona Zamira? Nunca! Aquela mulher colocava até prego na roda para que não saísse rolando. Ralé pura! Dava bom-dia com olhar de ralé. Nem sabia o que era música boa.

    Na esquina, comprimentou os velhos jogando dominó. "Passeando, Dona Tânia? Tá bonitona". Ela riu e disse que estava na labuta. Sentiu-se bela e jovem. Seguiu mais adiante. Uma pequena folhinha caiu em seu cabelo. Seu sorrisinho alargou mais um pouquinho. De repente, notou que a casa feia da rua agora estava pintadinha de amarelo com beiradas brancas. Finalmente! Pensou ela. Odeio casa feia na minha rua! Deu mais um sorrisinho.

   Diante da rua principal, levou um susto. Todas as lojas estavam fechadas. Incluive lá estava o horti-fruti sem horti e nem fruti. Lembrou-se que era feriado municipal. Daqueles que ninguém lembra, muito menos uma dona de casa cujos dias são meio que iguais. Resmungou e seu sorrisinho foi embora. Arrumara-se à toa e ainda ia ficar sem cebolas! Como viver sem cebolas?

    De repente, avistou Dona Zamira virando a esquina com o carrinho ranhento cheio de compras. Dona Tânia não sabia o que a irritou mais: o fato de ele ranger ou de ele estar cheio de compras. ah, sim, era o sorrisinho frígido e boa-tarde de ralé dela. No entanto, o que importava era saber como ela conseguiu a proeza de fazer feira no feriado. Logo, decidiu alongar o boa tarde para dentro que ela respondeu.

    "Como fizeste compras se está tudo fechado?"

    "Dona Tânia, uns ambulantes estavam ali ainda agora. Eu fui a última freguesa', respondeu sorridente.

    "Papai celestino, acabaram-se as cebolas! Imagina!"

    "Mas ora essa, divido as minhas, mulher. Quem vive sem cebolas?"

   Instanteamente, Dona Tânia desenvolveu uma espécie de respeito por Dona Zamira. Aquela sim era gente fina! Pessoa com alma! Dá a roupa rasgada do corpo se for preciso! Que sabe valorizar quem merece! Andava com roupa remendada sim, mas, ó, quanta simpatia! Sabia dar bom-dia comedido e nunca ligava o rádio tarde da noite. Melhor vizinha? Não havia!

    Assim, as duas mulheres voltaram ladeira acima. O carrinho resmungando. Resmugava tanto que Dona Tânia não aguentou e parou na esquina e pediu para trocar o carrinho. Sem entender o porquê, Dona Zamira aceitou a proposta. Contudo, ao pegar a sacola de cebolas, as benditas escapuliram e rolaram pela calçada. Dona Tânia gritou para os velhos da rua. Segurem estas cebolas! Ignorada, ela mesma saiu correndo morro abaixo para apanhar as cebolas da vizinha. Com uma força de vontade que nem a vizinha teve, por sinal...

    O dono da casa velha amarela parou as fugitivas com o pé. Então, agradecida, Dona Tânia parou trinfante a abaixou-se para apanhar a sacola. Sua dor nas costas se fora tamanha era sua alegria. Talvez também pelo alongamento súbido, talvez pela adrenalina... Levantou a sacola como um prêmio e acenou para Dona Zamira. Sorriu. Subiu o morro novamente como uma mocinha de quinze anos até encontrar sua vizinha conversando com os velhos. Sentia-se bela, jovem e poderosa. Bela, jovem, poderosa e, ainda por cima, com cebolas. 

    "Como você conseguiu correr daquele jeito? E sua lombalgia?", um senhor perguntou, rindo, ao colocar a peça de dominó na mesa.

    "Ora, pior é ficar sem cebolas!"

    "É mesmo. Quem vive sem cebolas?", Dona Zamira concordou, complacente.

    

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