Conto: O Ladrão de Pizza

 Um conto contemporâneo sobre a vez em que uma pizza valeu mais que um celular.

A buzina da motocicleta ressoou três vezes pela rua mal iluminada. A cortina da janela do sobrado se abriu, depois de vinte segundos. e uma sombra fez sinal ao entregador. Daí, passaram-se a ouvir três vozes discutindo sobre onde estava a carteira e quem desceria. O entregador já conhecia a ladainha, pois já era comum o cliente só deixar para procurar o dinheiro na hora em que a entrega chegava. Agora a discussão era quem iria buscar.

Então, enquanto aguardava alguém descer do sobrado, ficou respondendo mensagens no celular, entediado e desatento. Não havia viva alma na rua desde que começou a quarentena, principalmente àquela hora.

Completaram-se três minutos de espera. Já era quase uma e meia da madrugada de segunda e essa era sua última entrega. Suspirou cansado. Para ele, o fim de semana só acabava na madrugada de segunda quando os esfomeados tardios faziam os últimos pedidos. Compreensivamente, o motociclista só queria “capotar” na cama, dormir até dez horas e começar tudo de novo na terça. A demora o deixou inquieto, por isso, atreveu-se a dar uma pequena buzinada.

Após a buzina, passos apressados desceram a escada. O portão metálico descascado se abriu, e um jovem grandalhão de uns vinte anos, com máscara, o saudou com uma nota de cinquenta reais. O entregador fitou a nota amarelada e o sorriso amarelo escondido do jovem. Eles não tinham pedido troco; avisou que  ficariam sem. Por conseguinte, o jovem escondeu o sorriso escondido e reclamou que a pizza custava trinta e oito reais. Sem condições de ignorar doze reais! Voltou para buscar ao menos duas notas de vinte deixando o entregador com a pizza na mão.

— Depois ainda vão reclamar que estava fria, esses trouxas. — murmurou, apoiando a pizza em cima da moto e continuando a olhar o celular.

Ouviu passos. Virou. Era um mendigo não-mascarado, segurando uma faca de serra de cozinha. Faca calibre 20 centímetros.

— Vai me dizer que vai querer roubar meu celular com essa faquinha aí.— riu o entregador, dando uns tapinhas no muque.

— Sou ladrão, não, “compadi". Só quero a pizza e pode vazar. — disse o homem maltrapilho.

— Quer roubar a pizza e não é ladrão? Você tem certeza de que não quer roubar meu celular? — perguntou com admiração e desconfiança.

— Para que vou querer esta porcaria? Vou comer telefone? — o mendigo respondeu sem paciência balançando a faca de cozinha.

O motociclista deu uma gargalhada não acreditando no que lhe estava acontecendo. O mendigo queria roubar a pizza e não o celular. Entrando no jogo, o entregador sentou na moto e passou a falar enquanto olhava as suas mensagens.

— Para vender e, então, comprar o que quiser. Pode comprar mais comida que uma pizza, sei lá. — listou as opções maravilhosas do que o mendigo desavisado poderia fazer com seu celular novo.

— Às duas horas da madrugada? Deste bairro? Numa quarentena? Vou vender essa tralha para quem? — gargalhou — Cê não é muito inteligente, é? Está querendo que eu leve teu telefone no lugar de uma pizza que nem é tua! Facilita pra gente, véio!

— Se eu não receber o dinheiro, estou ferrado, “véio”! — declarou o entregador, imitando o tom de voz do ladrão de pizza, e escarneceu.

— Pode deixar que eu vou ajudar o senhor! Porque tu é trabalhador — sorriu o homem, apontando para a porta, de onde vinham barulhos de passos apressados.

            A porta metálica se abriu. Dessa vez, um outro jovem mascarado, bem magrelo, encarou assustado os dois homens na calçada escura. Esticou a mão com dinheiro trocado meio apavorado, e o entregador lhe passou a pizza. Ele sorriu com os olhos e agradeceu pela espera. O mendigo fez sinal para o motociclista deixá-los. Ele deu a partida na moto, não querendo saber o que ocorreria no resto da novela cômica.

            — Menino, me passa um pedaço dessa pizza? — pediu o mendigo colocando a mão na barriga.

— Nem pensar! Sai para lá que eu já te dei um prato de arroz e feijão não tem nem um mês. E você está sem máscara. — enxotou o rapaz, franzindo a testa.

            Em seguida, o homem sem máscara mostrou a faca de serra brilhando para o jovem, o qual saltou para trás assustado.

            — Eu não tenho celular. — avisou na hora.

Era verdade. O telefone dele havia sido roubado na semana passada. Por ser magrinho e meio desajeitado, sempre fora um alvo bem fácil. Por coincidência, a arma também fora só um objeto cortante. Havia dias que os irmãos mais velhos  zombavam da cara dele por isso.

        — Mas por que todo mundo aqui acha que eu quero celular? Passa logo essa pizza, menino! — exclamou  irritado.

            — Cara, a gente está com muita fome. Nossa mãe não está em casa! Ela está no turno da noite hoje. Você não quer que eu lhe dê dez reais e você vai comer em algum lugar? — o jovem franzino tentou negociar.

—Vai aprender a cozinhar! Aposto que cheio de comida na despensa esperando alguém que a faça. — apontou a faca, o que fez o rapaz automaticamente passar a pizza, tentando escapar para dentro de casa.

— Ô, ô. Fica parado aí. — gritou balançando a faca em direção a ele.

O rapaz paralisou. O que mais o mendigo queria? O homem sem máscara abriu a caixa de papelão, cortou um pedaço generoso da pizza família com a faca de serra e esticou o braço para devolver o restante para o adolescente confuso.

— Eu só queria um pedaço, menino! Ninguém me atende mais a porta depois desse vírus. Estou desde ontem à noite sem comer.

O rapaz fitou o homem sem máscara. Remoeu-se de culpa. Primeiro porque seu assaltante não hesitou em dividir com ele a pizza que ele lhe negara com tanta veemência não fazia nem dez minutos.  Segundo porque teve receio de comer uma pizza tocada pelo homem faminto. A mãe dele enfermeira lhe instruiu sobre contaminação. Fosse por receio porque o mendigo tocou sua pizza ou fosse por culpa porque o homem não tinha nada para comer, o menino recusou a oferta. 

— Tem macarrão para fazer, valeu. — engoliu seco e passou a matutar como explicaria aos irmãos mais velhos que perdeu a pizza para um homem armado com uma faca de serra. De novo. — É... se alguém perguntar, foram dois homens com fuzis que roubaram a moto e você pegou a pizza que deixaram cair no chão, tá?

Fechou o portão metálico descascado. Barulhos de passos seguiram.  

Distante dali, o entregador caçoava mentalmente do jovem magrelo. Como entregador,  seu celular já fora roubado duas vezes à mão armada, enquanto aguardava o comprador. Entretanto, nunca vira alguém deixar levarem uma pizza sendo ameaçado por uma faca de serra na porta de casa. Não é possível que o adolescente deixou aquilo ir até o final?

Curioso com a novela, o entregador não resistiu e deu meia-volta . Em menos de cinco minutos, encontrou o mendigo no meio fio comendo a uns cem metros da cena do crime. Não é que o espertalhão conseguira?

— Ô,  ladrão de pizza! É fácil assim conseguir a janta? É só mostrar uma faca de serra pro “frangote”? — falou alto.

— Já falei que não sou ladrão. — berrou e gesticulou, como sempre.


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