Conto: Objetificação

      O céu estava cinza. A tira da sandália nova roçava no calcanhar enquanto sua dona se apressava para a estação do metrô. Era um calçado baixo e macio, preto, custara trinta e cinco reais numa sapataria popular. Contudo, mentira que seria totalmente confortável. Aos poucos, a tira abriu uma ferida no local em que se atritava. Com o calcanhar já sangrando, a moça grunhiu. Depois, xingou o calçado de porcaria barata. A sandália respondeu se raspando mais um pouco no machucado.

    Não demorou muito e a rasteirinha foi parar em uma lixeira na frente de uma sapataria. Crime: culpada por pegar no pé da pessoa errada. A sandália, entretanto, era novinha. Daquelas que ninguém joga fora, mas fica preterida guardada no armário. Poderia ter sido doada ou vendida em um brechó. Mas não, foi atirada sem dó na lata do lixo.

    Após trinta e oito minutos, um catador de latinha começou a cutucar o lixo e jogou a sandália que machucava no chão, perto do meio fio.  A outra ficou dentro da lixeira, tristonha, separada de sua alma gêmea. Em cinquenta e dois minutos, um cachorro vira-lata passou perto e levou a sandália na boca até a porta de um estacionamento. Pôs-se a roer o calçado com afinco até a tira arrebentar. Daí engasgou com a tira, largou-a e se foi. Alguns carros do estacionamento passaram por cima da sandália. A cada atropelo, ela chegava mais perto da rua até que, por fim, parou no meio do asfalto.

   O calçado ficou ali exatamente mais dez minutos para tão somente cruzar pela vida de um office boy que atravessou a rua olhando para o celular. Desatento, o jovem tropeçou na sandália e deixou cair o envelope que segurava numa poça d'água. Para seu azar, eram documentos importantes de seu trabalho, por isso se desesperou. Num súbito de raiva deu um chute na sandália, a qual foi parar no copo de café de uma pedestre e o derrubou em cima de sua camisa branca. O office boy se desculpou aos gritos, em segundos, porém, insultos saíram da boca da mulher.

    Entrementes o calçado descalçado na calçada permaneceu paciente por seu próximo destino ou vítima. Algumas pessoas o chutaram pouco a pouco até o bueiro e, assim, se fincou ali firme entre suas grades. Depois de algumas horas, as nuvens ficavam cada vez mais densas e escuras até que finalmente se tornaram uma pancada de chuva. A água torrencial escorria pela beira da rua arrastando toda espécie de lixo que se prendia à sandália teimosa. Logo logo aquela parte da rua se inundou, fazendo um grupo de estudantes ficar ilhado na porta da escola.

    Com o fim da chuva, a água esvaiu lentamente e os estudantes deixaram a porta da escola felizes. A sandália, já coberta de lama, foi varrida por um gari cansado para dentro de sua lixeira. Conforme a lógica, ela foi parar no lixão da cidade, onde encontrou seu par como num final feliz estranho. Ainda assim, a  sandália, virada para a outra, perguntou em silêncio onde ela estava durante aquele tempo todo. A andarilha sussurrou todos os detalhes sórdidos de sua aventura e como atrapalhou a vida de tantos. A primeira, muda, ousou indagar o porquê fez isso.

"Não quero ninguém pisando em mim."

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